O treinamento de profissionais da atenção primária, como médicos de família e enfermeiros, combinado com iniciativas que envolvam a comunidade pode ser o caminho para aumentar a oferta de tratamento de transtornos mentais como a depressão e a ansiedade.
É o que afirma o psiquiatra Shekhar Saxena, 62, professor do departamento de saúde global de Harvard e ex-diretor de saúde mental da OMS (Organização Mundial de Saúde), que participou da conferência internacional de atenção primária em Astana (Cazaquistão).
“Nós sabemos que o número de médicos especialistas [psiquiatras] em países de média e baixa renda é extremamente baixo. Não há outra alternativa senão treinar profissionais da atenção primária, com a supervisão de especialistas”, diz ele.
Saxena é um dos autores de um recente relatório da revista The Lancet que faz severas críticas à qualidade dos tratamentos de problemas de saúde mental e o histórico subfinanciamento por parte dos governos.
O psiquiatra considera efetivos tratamentos psicológicos em grupos ou providos por meio de voluntários treinados na comunidade.
Uma iniciativa que vem ganhando apoio internacional, inclusive do duque e da duquesa de Cambridge, é o “friendship bench” (banco da amizade, numa tradução livre), desenvolvido pelo professor Dixon Chibanda, da Universidade do Zimbábue, país onde há apenas dez psiquiatras para uma população de 13 milhões de pessoas.
Chibanda treinou avós para ouvir e orientar pessoas com depressão e ansiedade. Um estudo publicado no Jama (Jornal da Associação Médica Americana) mostrou que aquelas que sentaram no banco e contaram seus problemas para as avós tiveram maior redução de sintomas da depressão e da ansiedade do que aqueles que não tiveram essa escuta.
Os bancos foram inicialmente testados no Zimbábue e atualmente estão sendo usados no Malaui, em Zanzibar e até em Nova York, em bairros como Bronx e Harlem.
O tratamento de doenças mentais na atenção primária é uma possibilidade real ou uma ilusão?
Para centenas de milhões de pessoas que são afetadas pelos transtornos mentais, receber o tratamento na atenção primária ainda é uma tremenda ilusão. Cerca de 90% das pessoas nos países de média e baixa renda não têm acesso a tratamentos efetivos mínimos. Por isso, encontros como esse em Astana são importantes para renovar os esforços para que governos incluam a saúde mental na atenção primária.
Recentemente, a revista The Lancet lançou um relatório em que trata desse assunto. O que ele traz de novo?
O documento demonstra, por meio de estudos, que mesmo em países pobres é possível oferecer um tratamento básico na atenção primária.
E qual o caminho para conseguir isso?
Nós sabemos que o número de médicos especialistas [psiquiatras] em países de média e baixa renda é extremamente baixo. Temos países na África com 19 milhões de habitantes e apenas um psiquiatra. Mesmo na América Latina o número de psicólogos e psiquiatras é grande, mas não o suficiente atender as necessidades de saúde mental da população, especialmente dos mais pobres. Não há outra alternativa senão treinar profissionais da atenção primária, com a supervisão de especialistas.
Mas como funcionaria?
A atenção primária varia muito de país para país. Em alguns, os serviços são gerenciados por médicos e enfermeiros, em outros por mais profissionais da saúde. Todos podem ajudar, mas de diferentes maneiras. Médicos e enfermeiras podem ser treinados para identificar e tratar pessoas com as desordens mentais mais comuns como depressão, ansiedade e problemas com álcool e drogas. Eles podem ajudar de 60% a 70% das pessoas. Algumas vão precisar ser encaminhadas a um especialista, mas será a minoria. A maioria pode ser cuidada em uma atenção primária bem treinada.
Há grande controvérsia entre a hospitalização ou não de doentes mentais. O que o sr. pensa sobre isso?
A questão é que um bom cuidado na comunidade [fora do hospital] custa caro e uma hospitalização ruim pode ser mais barata. Os governantes precisam criar modelos comunitários, como fez o Brasil com um grande número de clínicas da família [na verdade, os Caps, centros de atenção psicossociais], onde pessoas podem ser tratadas. Pode não existir em número suficiente, mas isso diminui muito a necessidade de hospitalização.
Nós sabemos que algumas pessoas vão continuar precisando de hospitalização, mas serão a minoria. Cuidar da pessoa na comunidade é melhor para o paciente, para a família e para os resultados do tratamento a longo prazo. Quando o paciente fica hospitalizado por mais de um ano, há grandes chances de ele nunca mais voltar ao convívio social.
A psicanálise pode levar muito tempo, custa caro. Há outras formas rápidas e efetivas para tratar problemas mentais?
Totalmente. Há terapias curtas para depressão e ansiedade que podem ser aplicadas por pessoas menos treinadas do que psiquiatras e psicólogos graduados. Se você tem acesso a esses profissionais, ótimo. Se não tem, é preciso treinar as pessoas que você tem por perto. Pessoas da comunidade podem ser treinadas em um período rápido. Em até oito sessões podem ser capazes de oferecer tratamento [terapêutico]. Isso é efetivo. A Organização Mundial da Saúde tem protocolos que mostram que intervenções psicológicas podem ser tão efetivas para depressão quanto os medicamentos. Você só precisa treinar essas pessoas para oferecer esses tratamentos de forma efetiva.
O que sr. pensa sobre iniciativas como o friendship bench?
Friendship bench é um método inovador de cuidado por meio do uso de voluntários treinados, desenvolvido no Zimbábue. Tem se mostrado efetivo.
Doenças como a depressão podem ser tratadas fora de um serviço de saúde?
Há muito o que pode ser feito pelas doenças mentais fora das clínicas. Do ponto de vista populacional, políticas sociais que aliviem a pobreza, diminuam a violência, eduquem as crianças, cuidem dos conflitos, dos desastres, podem ser muito efetivas para prevenir doenças mentais. Do ponto de vista individual, fazer bastante atividade física, comer de forma saudável para não se tornar obeso e não tomar remédios quando não precisam deles são condições que diminuem a prevalência de condições que levam à depressão.
O sr. pensa que os médicos sabem disso ou estão convencidos disso? Muitos médicos não sabem e muitos outros sabem disso, mas continuam fazendo a coisa errada.
Há problemas muito difíceis de serem manejados, por exemplo o crack no Brasil. Como lidar com isso? O problema da dependência é severo em muitos países. As soluções passam pelo controle para que a droga não esteja disponível às pessoas, mas muito do esforço será do lado da saúde pública. Como eu consigo diminuir a necessidade dessas drogas pelos jovens por meio da prevenção e como eu consigo ajudá-los a sair disso já que eles estão de fato dependentes da droga? Há muitos métodos psicossociais. Especialmente para a dependência à cocaína, a maior parte dos tratamentos é psicossocial, que ajudam pessoa a sair das drogas e a ter uma vida livre. Envolve reabilitação, recuperação. Obviamente, os tratamentos são de longo prazo. Não espere resultado em uma semana.
Em Harvard há experiências com terapias em grupo para dependentes de droga. Isso funciona?
Consultas e tratamentos em grupo podem ser muito efetivos. O consumo de drogas em geral é um fenômeno de grupo. Então a recuperação também pode ser em grupo.
(Fonte: Folha de S. Paulo)