“Meu trabalho hoje foi remover poeira [de equipamentos eletrônicos recém-fabricados]. O turno era de dez horas, e a cota somava 3.800 [unidades].” Com leves variações no tempo do turno e na quantidade de eletrônicos, essa frase é repetida diversas vezes em um relatório de 97 páginas, que retrata o trabalho maçante e mal-remunerado de funcionários terceirizados em uma fábrica chinesa.
O registro –feito em uma espécie de “diário”– foi escrito por uma mulher infiltrada a serviço da China Labor Watch, organização sem fins lucrativos baseada em Nova York, criada em 2000 para fiscalizar o uso de mão de obra em empresas chinesas. Entre agosto de 2017 e abril de 2018, o grupo investigou uma unidade da Foxconn em Hengyang (sudeste do país) dedicada a produzir eletrônicos da Amazon: tablets, o leitor digital Kindle e a caixa de som inteligente Echo Dot.
Divulgado em junho, o relatório aponta uma série de violações trabalhistas. Mais do que isso, detalha as duras condições enfrentadas por pessoas envolvidas na fabricação de eletrônicos (daqueles que você pode vir a chamar de “seus”): baixos salários, tarefas repetitivas, longas horas de expediente e ambiente insalubre.
Nesta semana, cinco meses após a denúncia, a Amazon e a Foxconn afirmaram que tomarão medidas para reverter as irregularidades na fábrica. O anúncio foi feito ao jornal britânico The Guardian, que trabalhou em parceria com a China Labor Watch durante a investigação. Entre essas mudanças, estão a contratação de terceirizados, o aumento no número de funcionários, redução na quantidade de horas extras e, de forma vaga, “ações para acabar com a confusão no pagamento de horas extras”.
O UOL entrou em contato por email com a sede da Amazon (EUA), pedindo detalhes sobre essas medidas, mas não obteve resposta. A China Labor Watch confirmou à reportagem que a Foxconn deu início às contratações de terceirizados, mas reforçou que ainda precisa acertar horas extras devidas a esses trabalhadores.
Horas extras, calor e repetição
Uma vez por mês, diz o relatório, os funcionários são obrigados a trocar de turno: vão do diurno (8h às 17h) para o noturno (20h às 5h) e vice-versa. Nesses dois períodos, geralmente estendidos por horas extras, os empregados têm 70 minutos para comer e, depois, um curto intervalo para descanso (dez minutos de dia ou 20 minutos à noite). Nos meses de mais atividade, chegam a fazer cem horas extras, sendo que o limite é de 36 horas extras mensais.
Cada terceirizado recebe cerca de US$ 2,26 por hora trabalhada, seja ela regular ou adicional. Se chegar atrasado dois dias no mês ou folgar dois dias nesse mesmo período, o valor cai para US$ 2,11. Em média, os terceirizados recebem entre US$ 312,12 e US$ 468,19 ao mês –daí a necessidade de fazer horas extras. A título de comparação, o salário médio de um trabalhador em Hengyang é de US$ 725,22.
Nem todos os trabalhadores moram na fábrica. Aqueles que vivem lá ocupam dormitórios para seis pessoas, sem saída de emergência ou extintor, e precisam se revezar para lavar seus uniformes (há somente um para o verão e outro para o inverno). O custo mensal da moradia na fábrica é de US$ 17,37, mais US$ 0,63 diários para cobrir água e luz.
Na maioria dos dias trabalhados, a funcionária infiltrada tinha de usar uma escova molhada com álcool para tirar o pó das caixas de som da Amazon. Algumas vezes ela também fez a inspeção do produto, conferindo se todos os botões estavam funcionando, por exemplo. O tempo todo ela tinha de usar luvas antiestáticas e uniforme, num galpão onde calcula que a temperatura era 5ºC mais alta do que a ambiente.
“Quando o trabalho fica muito entediante, a única coisa a fazer para o tempo passar mais rápido é conversar com os colegas. Nossas mãos fazem sempre os mesmos movimentos repetitivos, é muito cansativo”, relatou a mulher, que trabalhou e morou no local de 22 de março a 19 de abril. “Minhas costas doíam, a temperatura estava alta, comecei a sentir sede. As luzes eram muito claras, cansavam os olhos. […] Me ensinaram a inclinar minha cabeça a 45º sob essa luz para conseguir enxergar direito.”
Nos intervalos, quando a linha de produção para, muitos se debruçam sobre essa superfície para descansar. “Quando voltei [do intervalo], as luzes estavam apagadas e muita gente dormindo. No lixo havia pacotes de pão, caixas de leite, potes de macarrão instantâneo: muitas pessoas levam esse tipo de comida […]. Todos com quem conversei estavam extremamente insatisfeitos com a cafeteria da fábrica, pois a comida é ruim e cara.” Esse local, que abre somente durante o dia, cobra cerca de US$ 1,11 pela refeição mais barata.
Série de violações identificadas
As descrições da infiltrada retratam um trabalho maçante, mas não necessariamente falam das violações identificadas pela China Labor Watch. Em maio, essa organização enviou uma carta a Jeff Bezos, diretor-executivo da Amazon e o homem mais rico do mundo, alertando sobre 14 infrações existentes na fábrica da Foxconn. A seguir, algumas delas.
- O número de funcionários terceirizados chega a 40%, sendo que as leis chinesas determinam um máximo de 10%.
- Os funcionários devem chegar à posição de trabalho dez minutos antes do turno iniciar, mas não são pagos por isso.
- Funcionários terceirizados recebem apenas oito horas de treinamento, sendo que as leis chinesas estipulam um mínimo de 24 horas.
- Nos meses de pico, os funcionários chegam a fazer cem horas extras. No entanto, as leis estabelecem um máximo mensal de 36 horas.
- Terceirizados não recebem, caso deixem de trabalhar por problemas de saúde.
- O pagamento base não é o suficiente para os funcionários manterem um padrão de vida decente.
- Os terceirizados ganham o mesmo valor por trabalharem nas horas previstas e extras, uma violação da lei trabalhista.
- A cafeteria da fábrica não abre à noite. Muitos funcionários têm apenas a opção de comprar noodles na loja de conveniência da fábrica, o que a longo prazo pode afetar sua saúde.
- Se o funcionário chega atrasado, falta ou deixa de trabalhar por motivos de saúde, o responsável pela linha de produção reduz suas horas extras. Devido ao baixo pagamento, o fato de não poder trabalhar mais horas serve como punição.
Na ocasião, a diretora da Amazon Kara Hurst respondeu, agradecendo o contato (a mensagem aparece no relatório). Sem se aprofundar nas denúncias, ela explicou que seus fornecedores seguem um código de conduta e disse levar “extremamente a sério” essas violações. A resposta veio cinco meses depois, com as medidas anunciadas pelo “The Guardian”.
A Amazon enfrenta outras denúncias relacionadas às más condições de trabalho, como a do conselho nacional de segurança e saúde ocupacional dos EUA: em abril, o órgão colocou esta empresa entre as 12 que mais colocam seus trabalhadores em risco. Na sexta (23), que marcou a black friday, cerca de 620 funcionários dos centros logísticos da Amazon na Alemanha e Espanha entraram em greve, exigindo melhor pagamento e contratos trabalhistas que garantam condições salubres de trabalho.
A Foxconn tem fábricas no Brasil, com modelo de funcionamento diferente do país asiático. Em 2010, a fabricante enfrentou uma série de suicídios de seus funcionários na China, indicando as duras condições de trabalho nas fábricas terceirizadas de eletrônicos. Essa onda acabou, mas ainda há um longo caminho a percorrer, como aponta a infiltrada.
(Fonte: UOL)