A exposição de gestantes a produtos químicos, radiação, a níveis elevados de calor e ao contato com vírus e bactérias pode trazer problemas para a saúde da mulher e prejudicar a formação do bebê, alertam especialistas em saúde. Por essa razão, médicos consideraram acertada a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que no fim do mês passado derrubou o trecho da reforma trabalhista que admitia a possibilidade de grávidas e lactantes serem submetidas a atividades insalubres, geralmente associadas a estes agentes nocivos.
— É claro que defendo a igualdade de direitos sociais e políticos entre gêneros. Mas, do ponto de vista fisiológico, o organismo de homens e mulheres tem funcionamento diferente. O processo de gestação modifica o metabolismo da mulher e ela tem de ser olhada de forma diferenciada. Dependendo da exposição a algumas substâncias, pode ocorrer problemas no desenvolvimento embrionário, baixo ganho de peso ou parto prematuro e até abortamento — diz Márcia Bandini, médica especialista em medicina do trabalho e presidente da associação nacional dos profissionais dessa área, a ANAMT.
Para a advogada trabalhista Ana Paula Smidt Lima, do escritório Custódio Lima Advogados Associados, esse era um dos pontos da reforma que merecia alteração, pois atinge diretamente a proteção à saúde e bem-estar da mulher e da criança, uma garantia prevista na Constituição.
Com a decisão do STF, voltou a valer o texto antigo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), anterior à reforma aprovada em novembro de 2017: as gestantes e lactantes devem ser realocadas para outra atividade ou, na impossibilidade de realocação, deve-se conceder licença. Nesse último caso, terá direito a receber salário-maternidade.
A reforma havia alterado a redação do trecho que previa essa proteção e liberou o trabalho em locais de insalubridade média ou mínima, a menos que a gestante apresentasse um atestado indicando a necessidade de afastamento. A mudança foi contestada na justiça pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Foi esta ação que deu origem ao veto do STF.
Norma prevê limites de tolerância
No Brasil, o trabalho insalubre é definido como aquele exercido em ambiente prejudicial à saúde do empregado, explica a advogada. Geralmente está associado à exposição a produtos químicos e radiação e a níveis elevados de ruído, calor, frio, poeira e umidade. E também quando há contato com bactérias e vírus, como o trabalho em hospitais, laboratórios e na coleta ou tratamento de lixo. São realidades de profissionais das mais distintas áreas e níveis de formação, como uma coletora de lixo e uma médica.
Os limites de tolerância a esses agentes estão previstos em uma norma regulamentadora do governo federal — a NR 15. Se esse limite foi extrapolado — a medição do ambiente deve ser feita por um engenheiro de segurança —, é caracterizado situação de dano à saúde e insalubridade.
A médica Roseli Mieko Yamamoto Nomura, membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), diz que os dois pontos extremos da gestação, início e fim, exigem mais cuidados:
— Expor o corpo da grávida, nas primeiras 18 semanas de gestação, ao calor do fogão por muitas horas excessivas, por exemplo, ou à radiação, no caso de uma técnica de raio-x, traz riscos à formação do bebê ou pode prejudicar o estado de saúde da gestante. No final da gravidez, os riscos são mais associados à prematuridade, dependendo do tipo de insalubridade.
Risco semelhante ao do tabagismo
Raphaela Costa Leite Bueno, ginecologista e obstetra do Centro de Medicina Fetal, em Brasília, explica que a exposição de uma gestante a produtos químicos, por exemplo, pode resultar em uma criança com problemas respiratórios.
— Principalmente nos três primeiros meses, que é a fase de desenvolvimento do embrião, tudo aquilo que acontece no lado externo tem efeito sobre o feto. Uma mulher que se expõe a produtos químicos muitos fortes pode ter problemas respiratórios, asma e bronquite, e isso pode ficar de herança para o bebê, quando nascer. Os riscos são semelhantes ao que uma mãe fumante correria, se continuasse usando cigarros na gestação.
A presidente da ANAMT diz que, dependendo do produto químico, a trabalhadora que está se preparando para engravidar se afasta da função já nesse período, para minimizar qualquer risco, já que a confirmação de uma gravidez pode vir somente no segundo mês de gestação.
— A decisão do STF aumenta a proteção à gestante, mas cada caso é um caso. É preciso sempre avaliar a dose e o tempo de exposição ao risco e se há outros fatores associados. Em alguns casos, como por exemplo mulheres que trabalham expostas a frio intenso num frigorífico, você consegue contornar os riscos com roupas e equipamento adequados — explica Márcia.
Já a exposição ao calor intenso é mais complicada de ser contornada, principalmente em ocupações na indústria:
— Na gestação, tem toda uma mudança de circulação sanguínea. Em condições de calor extremo, a mulher pode ter perda de consciência por conta da dilatação dos vasos. Na lactação, diminui a produção de leite. Numa cozinha com forno e fogão, você pode ter uma boa ventilação e climatização. Mas, numa indústria com fundição, isso fica mais complicado. Como médica, sempre defendo que seja avaliado o risco de cada condição de trabalho.
Sobre o impacto da exposição da gestante a ruído em nível elevado, não há consenso na comunidade científica, diz a médica do trabalho. Há estudos, na Finlândia, que apontam risco maior de perda auditiva do bebê, mas esse prognóstico tem sido combatido por outros médicos. Também há pesquisas que apontam risco de o bebê apresentar baixo peso e nascer prematuro, já que a mãe é submetida a um ambiente de estresse continuado, devido ao barulho intenso. A avaliação de Márcia é que, na dúvida, a grávida deve ser afastada daquela função.
Apresentação de atestado não seria bem visto
O ministro do supremo Alexandre de Moraes, relator do processo no STF, foi um dos dez juízes que votaram a favor da proibição. Em seu voto, Moraes ponderou que, em muitas cidades do interior, a trabalhadora não tem acesso facilitado a um médico para conseguir o atestado. Ele também argumentou que a empregada poderia ser pressionada a não apresentar o atestado, para não se indispor com o empregador.
— A procura pelo atestado pode marcar a mulher de forma negativa. Notadamente, as pessoas tendem a criticar essa prática. Ela passa a ser vista como alguém que cria problemas e isso a coloca em uma situação de vulnerabilidade perante ao empregador — explica a advogada Ana Paula.
O ministro Marco Aurélio Mello foi o único a discordar da maioria. Para ele, a norma é constitucional. Ele considera razoável a necessidade de apresentação de atestado médico para comprovar a necessidade de afastamento da trabalhadora. Ele também ponderou que, com um tratamento diferenciado às mulheres, os empregadores podem começar a evitar a contratação delas.
Segundo a presidente da ANAMT, essa questão é muito sensível às empresas porque muitas têm custos adicionais com o afastamento ou realocação da gestante, ao passo que nem sempre têm em seus quadros alguém disponível para a substituição.
(Fonte: O Globo)