Muitas das pessoas que observam as ruas limpas do Município de Campo Grande não imaginam que essa visão pode estar embaçada por uma “sujeira” camuflada nas entrelinhas de um serviço público que se apresenta como vital à gestão urbana: coletores de lixo domiciliar são a categoria que mais sofreu acidentes de trabalho na capital de Mato Grosso do Sul em 2018, quando foram registrados 431 casos. Se traçarmos um panorama do estado, a soma revela 439 ocorrências, perdendo apenas para os alimentadores de linha de produção, com 562 notificações.
Os dados são do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, uma ferramenta digital do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que acompanha os acidentes de trabalho no país em tempo real. O observatório também permite delimitar uma janela mais larga de consulta – entre 2012 e 2018. Com esta seleção, 1.434 coletores de lixo domiciliar foram vítimas de acidentes enquanto laboravam, superados somente pelos técnicos de enfermagem, que aparecem com 1.764 ocorrências. Os números são altos, mas ainda há subnotificação. Em Campo Grande, a estimativa de subnotificação de acidentes de trabalho chegou a 24,6% em 2018, conforme aponta o observatório.
Um recorte parcial deste ano, referente até março, mostra 136 acidentes com trabalhadores desse segmento, que ficam atrás apenas dos profissionais do setor de abate de reses, com 154 notificações. A Solurb Soluções Ambientais Ltda., concessionária que faz a limpeza urbana e o manejo de resíduos sólidos em Campo Grande, é a empresa com maior número de acidentes em 2019 – foram 122 registros -, seguida da Seara Alimentos Ltda., com 34 casos.
No último dia 10, o destaque conferido à atividade de coleta de lixo domiciliar nos dados estatísticos do MPT e da OIT migrou para portais da imprensa, que repercutiram o acidente fatal com um funcionário da Solurb. Ao acenderem alerta vermelho para os riscos aos quais esses trabalhadores estão expostos, detectaram uma degradação das medidas de segurança que deveriam ser observadas por empresas e por empregados na execução do serviço.
Legislação e pesquisa
Hoje, pelo menos duas Normas Regulamentadoras (NR) editadas pelo extinto Ministério do Trabalho e Emprego disciplinam requisitos mínimos e obrigatórios para garantir a saúde e a integridade física dos trabalhadores e, consequentemente, prevenir acidentes de trabalho e doenças ocupacionais. Uma delas é a NR-12, que aglutina referências técnicas e procedimentos fundamentais à segurança nas fases de projeto e de utilização de máquinas e equipamentos de todos os tipos. A outra, NR-24, fixa critérios essenciais às instalações sanitárias e de conforto nos locais de trabalho.
Em 2012, o perito em Engenharia de Segurança do Trabalho do MPT em Mato Grosso do Sul Luiz Carlos Alves da Luz foi além na preocupação com a vulnerabilidade que afeta essa classe de empregados: defendeu, pela Universidade Estadual de Campinas, a tese de doutorado Segurança e saúde do trabalhador em serviços de limpeza urbana: estudo de casos. A pesquisa foi feita em uma empresa pública e em uma cooperativa de trabalhadores do Estado de São Paulo, bem como em uma empresa privada de Mato Grosso do Sul.
Ao fazer um apanhado das questões que circundam a coleta de resíduo sólido, o perito pontuou recomendações que devem ser seguidas, por exemplo, se os coletores de resíduo estiverem autorizados a se deslocarem nos estribos (degraus) dos veículos, prática comum adotada em Campo Grande. Nessas situações, os estribos devem ser construídos em material antiderrapante e grandes o suficiente para acomodar, confortavelmente, o trabalhador. Também devem conter materiais perfurados para evitar o acúmulo de sujeira e usados somente quando o veículo coletor avançar para curtas distâncias e em baixas velocidades.
A pesquisa desenvolvida por Luiz Carlos culminou com a sugestão de que fosse elaborado um projeto de Norma Regulamentadora específica para as atividades de limpeza urbana. Em 2017, a Comissão Tripartite Paritária Permanente, que envolve trabalhadores, empregadores da área e governo, concluiu uma minuta de texto com esse perfil. Porém, nos últimos anos os debates pouco avançaram e o país continua negligenciando saúde e segurança mediante a ausência de regulação.
Lição de casa
A letargia na aprovação de um regulamento específico para serviços de limpeza urbana não é capítulo isolado nessa história marcada por acidentes. A má separação do lixo doméstico aproxima os trabalhadores de riscos que poderiam ser evitados com conhecimento e disciplina.
“Há muitos registros de funcionários que acabam se ferindo com materiais perfurocortantes. Por isso, é importante que a população embrulhe esses resíduos em papel grosso, como um jornal, ou coloque-os em uma caixa”, aconselha a procuradora Simone Beatriz Assis de Rezende, responsável pelo procedimento aberto no MPT-MS para apurar as causas do acidente com o funcionário da Solurb na madrugada do dia 6 de julho.
São considerados materiais perfurocortantes aqueles contendo cantos, bordas, pontas ou protuberâncias rígidas e agudas, capazes de cortar ou perfurar, tais como: lâminas de barbear, agulhas, resíduos de vidro (potes, pratos quebrados, garrafas), lâmpadas, latas de condimento serrilhadas, lascas de madeiras ou palitos.
Além do acondicionamento do lixo doméstico, outra causa recorrente dos acidentes de trabalho com os coletores está nas condições das ruas da cidade. Devido aos buracos e desníveis, os profissionais acabam sofrendo lesões. A quantidade de peso transportada pelos catadores também contribui para o aumento de traumas. Elevadas metas e excesso de velocidade dos veículos que transportam os trabalhadores agravam a situação.
De acordo com o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, 623,8 mil acidentes de trabalho foram registrados no Brasil em 2018 (média de 72 por hora). Nesse período, 11,2 mil casos aconteceram em Mato Grosso do Sul (média de 30 por dia).
Com 4,5 mil acidentes no ano passado, a capital Campo Grande consome 40% das notificações do estado e aparece na 17ª posição dentre os 5.570 municípios brasileiros. Esse volume de ocorrências se torna mais expressivo quando comparado ao total de acidentes em estados como Paraíba (4,3 mil), Alagoas (4,2 mil) e Maranhão (3,9 mil).
(Fonte: MPT)