Foram quatro horas de cirurgia. Silvia (nome fictício) teve que drenar o tórax, abrir a região cervical e reverter a destruição de vasos sanguíneos importantes do jovem baleado. Toda aquela “trabalheira danada”, como ela chamou, porém, foi pelo ralo algumas horas depois.
À noite, um grupo de traficantes entrou no hospital fingindo procurar atendimento ortopédico e invadiu o espaço onde ele estava internado com outros 11 pacientes para “terminar o serviço”. O sujeito morreu entubado na maca, metralhado, enquanto os médicos e enfermeiros se escondiam em suas salas.
A história aconteceu há cerca de 15 anos, mas a cirurgiã —que não quis se identificar por medo— não esquece dos detalhes. Junto a essa, ela relembra inúmeras situações de violência que viveu e ainda vive nos quase 30 anos de carreira em emergências do Rio de Janeiro.
As unidades de saúde do estado acumulam o maior número de mortes por causas violentas do país, considerando agressões (principalmente por arma de fogo) e intervenções policiais. Foram 2.296 óbitos em 2017, segundo o Datasus, ou uma vítima a cada quatro horas.
Com esse tipo de paciente, vem uma rotina que deveria ser assunto de polícia, mas é a realidade diária dos médicos e outros profissionais de muitos prontos-socorros fluminenses.
“Baleado é sinônimo de violência e selvageria. Por mais que a gente não queira pensar, isso entra na nossa cabeça. Mas acabamos nos acostumando, nos mantemos cronicamente assustados”, resume o clínico Júlio Noronha, chefe da emergência do Hospital Federal de Bonsucesso por cerca de 20 anos.
A discussão voltou à pauta depois que, na madrugada de 21 de setembro, um grupo de policiais militares invadiu o mesmo local em que Silvia viveu momentos de terror anos atrás, o hospital estadual Getúlio Vargas (zona norte), para tentar pegar o fragmento de projétil de fuzil que estava no corpo da menina Ágatha Félix, 8.
A menina havia sido atingida dentro de uma Kombi no Complexo do Alemão quando voltava de um passeio com a mãe, e investigadores ainda apuram se o tiro partiu ou não de um policial.
Naquela noite, a equipe médica não entregou a bala aos agentes, justamente porque estava acostumada com situações daquele tipo —logo, sabia que o procedimento oficial não era aquele.
Normalmente, quando o cirurgião consegue retirar o projétil de dentro do paciente, ele é identificado, guardado e entregue às polícias Civil ou Militar, mas só após ser solicitado por meio de um documento oficial.
Foi nesse tipo de operação que o cirurgião José Júlio Monteiro aprendeu, ainda na década de 1990, os efeitos de cada calibre de fuzil. Ele foi chefe da cirurgia geral do hospital municipal Souza Aguiar (Centro) por nove anos e hoje atua no Miguel Couto (Leblon).
“Naquela época ninguém sabia ainda a diferença de um tiro de fuzil, que expande e faz uma cavidade dentro do corpo. Hoje os médicos do RJ estão todos habituados, só não são tão experientes porque normalmente essas vítimas já chegam mortas”, conta.
Outros procedimentos também precisaram ser adaptados à violência da cidade.
“Foi quando começamos a diagnosticar a chamada síndrome do compartimento abdominal. São casos de arma de fogo de muito trauma, em que o paciente evolui mal e o intestino fica tão inchado que leva a um colapso circulatório”, diz. “Descobrimos que se abríssemos e deixássemos o intestino para fora, a pressão voltava na hora.”
Além dos ferimentos por tiros, esses médicos também estão acostumados a uma convivência constante com policiais e criminosos na emergência. Pelo menos um PM fica sempre 24 horas de plantão ali para registrar ocorrências.
“A gente tem uma máxima de hospital público”, afirma o cirurgião ortopédico Ricardo Farias.
“Sempre que os policiais chegam correndo desesperados ou num grupo grande, é porque algo deu errado. Quando é bandido eles vêm devagarinho, com a sirene desligada.”
Conselheiro do Cremerj (conselho de medicina), Farias trabalhou sete anos em prontos-socorros na capital.
Se esse preso tem que ficar internado, o clima é de tensão. O medo é haver tentativas de resgate pela quadrilha, por exemplo. Fica todo mundo incomodado, querendo estabilizar logo o paciente para que ele seja transferido para uma delegacia ou unidade prisional, relatam os médicos.
Isso porque não existem mais hospitais penitenciários no Rio, apenas uma UPA no complexo prisional de Bangu (zona norte) que não atende casos de alta complexidade. Então, o custodiado normalmente fica junto com os outros doentes, vigiado por policiais.
Um caso que causou trauma no Rio foi o do traficante Márcio Greick em 2001. Em um resgate cinematográfico, cerca de 20 homens com fuzis invadiram o hospital de Bonsucesso, desceram do quarto andar com o criminoso algemado à cama, espancaram vigilantes, feriram pacientes e mataram um policial.
Mas também é comum ocorrerem ameaças e agressões mais veladas a profissionais da saúde, normalmente em locais conflagrados.
“Quando sinto que tem alguma coisa errada, tento conversar o mínimo possível com o paciente, e, de preferência, peço sempre um policial por perto”, conta Silvia, que hoje trabalha em unidades da Região dos Lagos.
Ela lembra de uma colega pediatra no hospital Getúlio Vargas que foi morta, anos atrás, após não atender ao pedido de um pai para que sua filha fosse examinada primeiro. “Esse vai ser seu último plantão”, teria dito ele um dia antes do assassinato.
Em outra ocasião, uma paciente deu um tapa na cara de uma residente quando ela abriu a porta da sala de sutura para chamar o próximo da fila abarrotada.
No Hospital da Posse, em Nova Iguaçu, outro pai nervoso cortou o rosto de uma médica com um canivete.
As agressões a médicos continuam sendo tão frequentes que no ano passado o Cremerj decidiu criar um canal para computá-las. De dezembro a agosto, foram registrados 69 casos —um a cada quatro dias—, alguns deles com ataques físicos.
No caso do clínico Noronha, ex-chefe da emergência de Bonsucesso, as ameaças saíram dos corredores e entraram na própria administração da unidade, a maior do estado. “Eu quero o Noronha morto e enterrado”, teria dito numa conversa gravada um homem ligado à antiga direção.
Essa gestão está sendo investigada desde 2018 por suspeita de envolvimento com milícias, que atuariam recebendo dinheiro para furar a fila de consultas e exames.
No início do ano, uma equipe do Ministério da Saúde disse ter sido intimidada ao tentar fazer uma vistoria.
Noronha também não tira da cabeça um outro caso que viveu no hospital em meados de 2010, quando a unidade ainda passava por longas reformas e a emergência era feita em contêineres.
“Chegou um Caveirão da polícia com nove corpos, nem sei por que levaram para lá, um estava com o tampo da cabeça estourado.”
Apesar de tudo, ressalta ele, médico é médico. “Médico não é juiz, para a gente não faz diferença se é policial, se é bandido, se é vítima de assalto. Você cuida de acordo com a gravidade do ferimento e pronto.”
(Fonte: Folha de S. Paulo)