Desastres naturais (Enchentes) x Doenças envolvidas

Dr. João Marcelo Ramalho, diretor científico da Associação Cearense de Medicina do Trabalho (ACEMT)

As enchentes, resultado de eventos naturais como fortes chuvas, transbordamento de rios ou rupturas de barragens, representam uma das mais devastadoras catástrofes que a humanidade enfrenta. Além das perdas materiais, sociais e emocionais, as enchentes carregam consigo uma série de riscos à saúde pública, desencadeando uma variedade de doenças emergentes que podem agravar ainda mais a situação pós-desastre. Neste texto, exploraremos as principais doenças esperadas em casos de enchentes, seus impactos e as medidas preventivas necessárias para mitigar esses efeitos.

Vale lembrar ainda que tais doenças poderão acontecer tanto com a população vítima das enchentes quanto com os trabalhadores envolvidos em serviços e em atividades voltadas para o desastre natural.

1. Doenças Transmitidas pela Água

Um dos principais riscos de saúde associados às enchentes é a disseminação de doenças transmitidas pela água, causadas por microrganismos patogênicos presentes em águas contaminadas. Entre essas doenças, destacam-se as doenças diarreicas, que são causadas por bactérias, vírus e parasitas encontrados nos microrganismos presentes nos esgotos e nas fezes de animais. A circulação frequente é dos norovírus que atinge todas as faixas etárias, somado aos enterovírus, Rotavírus, bactérias como Escherichia coli, Salmonella, Shigella,e outras. Durante as enchentes e inundações os microrganismos presentes em esgotos podem se misturar à água e à lama das enxurradas, além de contaminar alimentos, utensílios e louças. É necessário observar que não se faça o consumo de água contaminada. Além disso, deve-se evitar o contato direto com a água contaminada e com lamaçais produzidos nessas enchentes. Ouras doenças que podemos encontrar são: a leptospirose, a febre tifoide, a hepatite A e o Tétano. A água contaminada pelas enchentes se torna um meio propício para a proliferação desses agentes infecciosos, aumentando significativamente o risco de surtos e epidemias.

No caso das doenças diarreicas, é fundamental manutenção da hidratação do paciente, observar os sinais e sintomas apresentados (Presença de diarreia aquosa, com muco ou sangue? Mal-estar geral? Dor abdominal? Náusea e vômito? Febre?) para poder direcionar a conduta terapêutica adequada.

Em casos de leptospirose, temos de lembrar que em sua fase precoce haverá apresentação de uma síndrome febril aguda com febre alta; calafrios; mialgias intensas; vasodilatação cutânea e de mucosa com eritemas; sufusão conjuntival; hepato e/ou esplenomegalia e linfadenopatia, dentre outros sintomas. Geralmente, é autolimitada e dura entre 3 e 7 dias, sem sequelas à síndrome febril aguda com febre alta.

Cerca de 15% dos pacientes poderão evoluir com a fase tardia caracterizada por manifestações clínicas graves que iniciam após a primeira semana da doença ou podem ocorrer precocemente em evoluções fulminantes. A manifestação clássica da leptospirose grave é a síndrome de Weil, composta pela tríade de icterícia, insuficiência renal e hemorragia, mais comumente pulmonar. A icterícia (icterícia rubínica) aparece entre o 3o e o 7o dia da doença e é um preditor de pior prognóstico.

Como a maioria das ocorrências é autolimitada e os pacientes melhoram espontaneamente, embora ainda controverso, o tratamento não é indicado para todos os casos suspeitos. Pacientes hígidos com forma anictérica e sem manifestações hemorrágicas podem ser tratados apenas com sintomáticos. Para pacientes com a forma ictérica e aqueles com comorbidades e/ou manifestações hemorrágicas, a administração de antibiótico é o tratamento de escolha.

Em casos de Febre Tifoide, a transmissão se dá por via fecal-oral, por contato direto com as mãos do doente ou do portador, ingestão de água ou alimentos contaminados por fezes ou urina de carreadores assintomáticos ou contato com fômites contaminados. Infecções subclínicas podem ocorrer com a ingestão de número menor de bactérias. O período de incubação, em média, é de duas semanas (1-3 semanas), dependendo da dose infectante. A apresentação clínica inclui febre alta prolongada, fadiga, mal-estar, cefaleia, dor abdominal difusa, constipação, hiporexia, dissociação pulso/temperatura, tosse seca, manchas rosadas no tronco e hepatoesplenomegalia. O diagnóstico é primariamente clínico e complementado por cultura. O tratamento com antimicrobiano geralmente melhora o quadro em dois dias e, mais marcadamente, em 4-5 dias.

Em casos de Hepatite A, a infecção causada pelo vírus da hepatite A (HAV), transmitido frequentemente pela via fecal-oral e que não se cronifica. No caso das enchentes, a transmissão esperada seria pela ingestão de alimentos ou água contaminados.

Inicialmente, a sintomatologia costuma ser inespecífica: náuseas, vômitos, anorexia, febre, mal-estar e dor abdominal. De dias a semanas, podem surgir colúria e acolia fecal seguidas por icterícia e prurido. Os sintomas iniciais tendem a se reduzir quando aparece a icterícia, cujo pico acontece tipicamente em 2 semanas. Em geral, após 3 meses, o paciente está recuperado. Cerca de 70% dos adultos apresentam a forma sintomática. Crianças < 6 anos habitualmente são assintomáticas. A vacinação é uma importante medida de prevenção dessa doença.

Em relação ao tétano, temos uma doença aguda associada à ação de exotoxinas de Clostridium tetani, que atuam em estímulos hiperexcitatórios no sistema nervoso central. Após a inoculação de esporos da bactéria em mucosas e em pele por ferimentos ou cortes, sejam esses superficiais ou profundos, e em condições de anaerobiose, os esporos podem germinar e ativar a produção das exotoxinas: tetanopasmina e tetanolisina. O período de incubação ocorre a partir do ferimento, e o início dos sintomas é de 5-15 dias com variação de 3 a 21 dias, sendo a evolução em curtos períodos de pior prognóstico. Em seu quadro clínico, os sinais e os sintomas inespecíficos incluem febre baixa (pode estar ausente), dificuldade de abertura da cavidade oral e de deambular, com evolução para os sintomas clássicos (trismo e/ou riso sardônico; hipertonias musculares localizadas ou generalizadas, rigidez cervical e rigidez paravertebral com evolução para possível opistótono); que indicam acometimento neurológico.

A abordagem terapêutica envolve: Sedação/relaxamento do paciente; neutralização da toxina com soro antitetânico, ou imunoglobulina humana antitetânica; desbridamento do foco infeccioso para a eliminação da bactéria; antibioticoterapia e medidas de suporte.

Em relação à prevenção e profilaxia do tétano, a vacinação em dia e o manejo adequado de ferimentos (desinfecção; lavar com soro fisiológico e substâncias oxidantes ou antissépticas; remover corpos estranhos e tecidos desvitalizados; desbridamento do ferimento e lavagem com água oxigenada) serão fundamentais.

2.Infecções Respiratórias e Dermatológicas

Além das doenças transmitidas pela água, as enchentes também podem levar ao aumento das infecções respiratórias, devido à exposição prolongada à umidade e ao acúmulo de mofo e fungos em ambientes inundados. As pessoas afetadas podem desenvolver quadros de bronquite, pneumonia e outras doenças respiratórias. Além disso, a exposição à água contaminada pode causar dermatites, infecções de pele e feridas, especialmente em áreas onde há contato direto com as águas contaminadas.

3. Doenças Transmitidas por Vetores

Outro grande desafio enfrentado em situações de enchentes é o aumento da proliferação de vetores de doenças, como mosquitos, moscas e roedores. Isso pode levar a um aumento dos casos de doenças como dengue, zika, chikungunya e malária. As águas paradas deixadas pelas enchentes oferecem locais ideais para a reprodução desses vetores, aumentando o risco de transmissão dessas doenças para a população afetada.

4. Traumas e Distúrbios Psicossociais

Além das doenças físicas, as enchentes também têm impactos significativos na saúde mental e emocional das pessoas afetadas. O trauma causado pela perda de entes queridos, de bens materiais e pela necessidade de reconstruir suas vidas pode levar a distúrbios psicológicos, como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático. É essencial que as autoridades e organizações de saúde mental estejam preparadas para oferecer apoio psicossocial às comunidades atingidas.

5. Medidas Preventivas e Mitigadoras

Diante desses desafios, é crucial adotar medidas preventivas e mitigadoras para reduzir os impactos das enchentes na saúde pública. Entre as principais ações a serem tomadas, destacam-se:

• Monitoramento e alerta precoce: sistemas eficazes de monitoramento e alerta precoce podem ajudar a prevenir surtos de doenças, permitindo que as comunidades ajam rapidamente para se protegerem.
• Melhoria da infraestrutura de saneamento: investimentos na melhoria da infraestrutura de saneamento básico são fundamentais para reduzir a contaminação da água e prevenir a propagação de doenças transmitidas pela água.
• Educação e conscientização: programas de educação e conscientização pública são essenciais para informar as comunidades sobre os riscos à saúde associados às enchentes e as medidas que podem ser tomadas para se protegerem.
• Acesso a cuidados de saúde: garantir o acesso a cuidados de saúde de qualidade é fundamental para o tratamento eficaz das doenças emergentes e para o apoio às comunidades afetadas.

Em conclusão, as enchentes representam uma séria ameaça à saúde pública, desencadeando uma série de doenças emergentes que podem agravar ainda mais a situação pós-desastre. No entanto, com medidas preventivas adequadas e uma resposta coordenada das autoridades e da sociedade civil, é possível reduzir significativamente os impactos das enchentes na saúde das comunidades afetadas.

Referências:

1. Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Coordenação-Geral de Desenvolvimento da Epidemiologia em Serviços. Guia de Vigilância em Saúde. 3a ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.
2. GUIA BÁSICO PARA RISCOS E CUIDADOS COM A SAÚDE APÓS ENCHENTES, informe técnico/ CEVS 2023, RS.
3. Ensuring safety and health at work in a changing climate. ILO- International Labour Organization. Extreme Weather Events.
4. Whitebook, PEBMED.

Por |2024-05-13T13:03:06-03:0013 de maio de 2024|Institucional, Notícias|Comentários desativados em Desastres naturais (Enchentes) x Doenças envolvidas