O uso de exames que detectam substâncias psicoativas em empresas divide as opiniões de especialistas. Enquanto companhias que os aplicam dizem ter a saúde e a segurança dos funcionários em mente, há quem veja uma violação da intimidade.
Não há uma lei ou norma específica que regulamente o uso desses testes por meio da análise de amostras biológicas, como urina, saliva e cabelo. A exceção são os motoristas profissionais e os aeronautas (pilotos, comissários e mecânicos de voo), obrigados a passar pelo exame.
Na opinião de Fabíola Marques, professora de direito do trabalho da PUC-SP, a empresa só pode aplicar o teste se tiver o consentimento do profissional e comprovar que, por conta de sua função, o uso de álcool ou drogas ameaça a vida dele ou de outras pessoas.
Na prática, muitas empresas adotam o exame toxicológico já na seleção de candidatos a vagas e também submetem funcionários periodicamente ao teste.
Especializado em exames toxicológicos, o laboratório Maxilabor, em São Paulo, diz ter uma clientela de 250 companhias no país. A maioria delas são empresas nas quais a execução de tarefas sob o efeito de álcool e drogas oferece risco de acidentes graves -caso de indústrias, empresas aéreas, transportadoras e mineradoras.
Segundo o diretor-médico do laboratório, o toxicologista Anthony Wong, algumas dessas firmas aplicam os testes apenas em profissionais que executam funções mais críticas. Outras submetem todos os funcionários com o intuito de não haver distinção entre empregados.
Para Fabíola Marques, a tática faz sentido do ponto de vista legal, pelo princípio da igualdade, ou seja, de não conferir tratamento diferenciado a grupos de funcionários. Mas o profissional não pode ser coagido a participar, diz.
Wong afirma que, nas empresas em que atua, a escolha de participar ou não cabe sempre ao funcionário. Quem se recusa a passar pelo exame, contudo, fica sob o que chama de “uma vigilância discreta”.
“O funcionário não pode ser constrangido a assinar o documento de adesão. Ele só assina se quiser, mas nosso índice de aceitação é de 99,3%.”
De acordo com o médico, todo o processo, desde o sorteio dos funcionários aos resultados dos testes, ocorre em sigilo.
Se uma substância é encontrada no exame, o profissional é submetido a uma avaliação psicológica. Se necessário, é encaminhado a tratamento.
O programa pode ser usado até por companhias que não desempenham atividades consideradas de risco, segundo o toxicologista. O próprio Maxilabor aplica os exames em candidatos a vagas de emprego e em seus cem funcionários.
Se não há risco envolvido, o que prevalece, na opinião da advogada Marques, é o direito à intimidade, previsto na Constituição. Ela cita ainda a lei 9.029, que proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória para o acesso ao emprego ou a sua manutenção.
Em 2017, a Centauro, rede de lojas de artigos esportivos, foi condenada por submeter seus funcionários a exames do tipo. Segundo depoimentos, os funcionários sorteados para o teste eram alvo de brincadeiras, como ouvir que haviam sido escolhidos por terem “cara de noia”.
Em nota, a Centauro afirmou que a prática foi extinta.
“Se o que o funcionário fizer na vida privada não tiver repercussão na sua condição de trabalho, não é legítimo que o empregador faça nenhum tipo de invasão”, afirma Valdirene de Assis, procuradora do Ministério Público do Trabalho.
Já o advogado Rafael Spadotto, professor da pós-graduação de gestão de pessoas da Faap, argumenta que a exigência do teste em si não pode ser considerada uma violação da intimidade. O problema só existe, segundo ele, quando há a exposição de quem foi sorteado para fazer os testes ou a divulgação dos resultados.
O advogado também ressalta que o profissional não pode ser demitido caso o resultado dê positivo. “A dependência química não é mais considerada causa para dispensa, mas condição para tratamento.”
Nos 14 meses em que trabalhou como garçonete a bordo de um navio, a carioca Thalita Lopes, 23, foi submetida duas vezes ao teste de urina. Ela diz que em uma das ocasiões foi escolhida como retaliação por sua chefe. “Ela não gostava de mim e quis ver se achava alguma coisa”, afirma.
Thalita conta que foi convocada para fazer o exame logo após ter desembarcado para visitar a família, no Rio. O resultado deu negativo. “Fui chamada no meio do trabalho, entre os meus colegas.”
A Anamt (Associação Nacional de Medicina do Trabalho), em diretriz técnica, não recomenda a aplicação do teste toxicológico como medida isolada para prevenção
de acidentes de trabalho.
A presidente da entidade, Marcia Bandini, diz que não há evidências em artigos científicos de que a prática reduza o número de acidentes.
Segundo a médica, se a empresa quiser aplicar o rastreamento, os exames devem fazer parte de um programa robusto de prevenção e reabilitação do uso de álcool e drogas.
Já Sérgio Duailibi, médico especialista em dependência química, acredita que o uso de testes, também dentro de um programa, é uma das medidas ambientais mais efetivas para evitar acidentes, por levar à mudança do comportamento. “Se o funcionário tem medo de ser pego, para de usar drogas, pelo menos perto da data em que vai trabalhar.”
(Fonte: Folha de S. Paulo)